sábado, 29 de dezembro de 2012

Os algozes de Pâmela

Jovem e sem antecedentes criminais, Pâmela foi presa preventivamente por força de decisão judicial que revelava convicção sobre sua culpa, antes mesmo que a defesa tivesse a oportunidade de produzir qualquer prova. Ao final de quase dezesseis meses, foi libertada por sentença que a absolveu.

A prisão temporária foi decretada por trinta dias, enquanto Pâmela era mantida compulsoriamente no interior da delegacia de polícia, aguardando a decisão. A prática é largamente utilizada, apesar de ser evidentemente ilegal. Não havendo flagrante delito, tampouco mandado de prisão, inexiste qualquer autorização legal para que se detenha alguém no interior de qualquer delegacia, esperando-se que seja decretada a prisão temporária e expedido um futuro e incerto mandado de prisão.
A prisão temporária somente pode ser usada durante a investigação que antecede o processo e tem tempo de duração estabelecido pela decisão que a decreta. Em regra, o tempo máximo de duração é de cinco dias, prorrogáveis por igual período. Contudo, nos casos em que são investigados crimes hediondos ou equiparados a hediondos, como é o caso do tráfico de drogas, a duração da prisão pode ser de até trinta dias, prorrogáveis por mais trinta.
Quando estavam prestes a se esgotar os trinta dias, o Ministério Público ofereceu denúncia em face de Pâmela e de outros oito acusados, requerendo a decretação da prisão preventiva de todos. A preventiva é modalidade de prisão que pode coexistir com o processo penal, não havendo qualquer prazo previsto expressamente em lei para sua duração. Curiosamente, a nenhum dos acusados foi atribuída à prática do crime de tráfico de drogas. Todos foram denunciados pela suposta prática do crime de associação para o tráfico de drogas. Tal delito não é hediondo e nem mesmo equiparado a hediondo, não autorizando a duração da prisão temporária por mais de dez dias. Novamente, estamos diante de prática utilizada de forma recorrente. Mesmo quando não há qualquer perspectiva de se imputar ao investigado a autoria de um crime hediondo ou equiparado, afirma-se que tal espécie de crime está sendo apurado, de modo a permitir a maior duração da prisão temporária.
Diante da denúncia, o juízo determinou a notificação dos denunciados para que apresentassem defesa preliminar. No mesmo momento, decretou a prisão preventiva de todos os acusados, baseando-se em dois argumentos.
Inicialmente, ponderou que facção criminosa autodenominada Comando Vermelho dominava o tráfico de drogas no bairro de Jacarepaguá, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, tornando necessária a atuação do Estado para tranquilizar a população, afastando os traficantes locais. Prosseguiu o juízo dizendo que Se em um processo como este – em que nove pessoas são denunciadas pela prática do crime de associação para o tráfico de drogas – a prisão cautelar não for justificada para garantia da ordem pública, honestamente, este Magistrado não sabe em que o processo poderá usar tal fundamento legal.
Do ponto de vista técnico-jurídico, o primeiro argumento mostra-se completamente descabido. A Constituição da República dispõe que todos os acusados devem receber tratamento de inocente até que sejam condenados por sentença definitiva. Isso impede que o fundamento para a decretação da prisão seja extraído da acusação que é feita ao réu. Ao afirmar que decretava a prisão para “tranquilizar a população, afastando os traficantes locais”, o juízo presumiu a culpa de todos os denunciados, violando de forma evidente a Constituição.
Contudo, o juízo invocou, ainda, um segundo argumento. Afirmou que os denunciados não haviam comprovado qualquer vínculo com o “distrito da culpa”, o que poria em risco a aplicação da lei penal, ante a possibilidade de se evadirem, caso postos em liberdade. Esta ponderação perderia rapidamente qualquer poder de convencimento. A defesa técnica de Pâmela juntou aos autos o comprovante de residência da acusada e pleiteou a revogação da prisão preventiva, ante a comprovação do endereço em que Pâmela mantinha residência fixa. O juízo manteve a prisão.
Após a apresentação das defesas preliminares de todos os denunciados, o juízo recebeu a denúncia. Pâmela já se encontrava encarcerada há mais de sete meses. Isso significa que caso fosse condenada à pena mínima prevista para o crime do qual era acusada, já estaria presa tempo suficiente para progredir de regime.
Iniciou-se a colheita das provas. A acusação dizia que Pâmela transportaria indivíduos e armas de uma favela até o morro que os supostos traficantes pretendiam dominar, utilizando-se de carros roubados. Pâmela negou o fato desde o primeiro momento. Explicou que em uma única oportunidade fora abordada por homem que seria o chefe da quadrilha e este determinou que levasse duas pistolas para o morro em questão, ameaçando matar seus familiares. A acusada fez questão de sublinhar que não tinha qualquer antecedente e jamais esteve envolvida com ocorrências policiais, nem mesmo durante sua menoridade. Portanto, a versão de Pâmela era de que fora vítima de traficantes e não de que estaria associada a qualquer um deles.
Realizadas as audiências, ouvidas as testemunhas e produzidas todas as provas, o juízo estava pronto para decidir. Pâmela já estava presta há quase dezesseis meses quando a sentença foi proferida. O juízo reconheceu que as provas produzidas eram incapazes de demonstrar, sem deixar sombra de dúvida, que Pâmela mantivesse vínculo estável e permanente com qualquer traficante. Toda aquela certeza demonstrada quando da decretação da prisão preventiva não mais existia. Pâmela foi absolvida (autos n.º 0291004-49.2011.8.19.0001). Recuperou a liberdade após quinze meses e vinte e cinco dias. Seu principal algoz, além do chefe do tráfico, foi a convicção tão precipitada quanto forte, que permitiu a decretação e a manutenção de sua prisão ao arrepio da Constituição.

2 comentários:

  1. Olá! Sou de São Paulo e vim parar aqui no seu blog por comentários feitos no VioMundo. Não sou da área de Direito, o q eu faço nada tem a ver com isso, mas sua proposta é interessante. Outra visão do que estamos acostumadas a ver na tv.

    Não sei se é a tua proposta mas hj vi o caso do cartunista Glauco, morto em 2010, quem o matou será libertado em março. Parece q o assassino tem doença mental e será solto. A família está transtornada. O q vc tem a dizer sobre isso? Eu fiquei indecisa ao ver a reportagem: entendo o medo e dor da família mas tb fiquei confusa com a decisão do Estado em libertar alguém q - pelo q entendi - tem uma doença incurável. Obs: assisti naqueles programas tipo Cidade Alerta e o outro da Band q esqueço o nome...
    Parabéns pelo blog!

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    1. O blog denuncia a ineficácia dos direitos da pessoa presa. Apesar da lei assegurar que a pessoa é titular de uma série de direitos, tais direitos simplesmente não saem do papel. O discurso da grande mídia contribui com isso, pois induz ao desejo de maior rigor nas punições e legitima essa absurda ineficácia.

      Quanto ao caso que você citou, não tenho qualquer informação. Mas posso dizer que a existência de doença mental, por si só, no mais das vezes, não é óbice ao exercício de qualquer direito.

      Obrigado pela visita.

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