quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Órfãos de justiça

Em uma sociedade na qual o discurso do terror difunde um aumento da criminalidade que nem sempre corresponde aos índices existentes, cada vez se tem menos cuidado para prender e mais cuidado para soltar, invertendo-se a lógica de qualquer Estado de Direito e gerando absurdos que não serão noticiados pelo Jornal Nacional.

Treze de setembro de 2012. Um dia para o Estado de Direito lamentar profundamente. Início de tortuoso período que duraria quase um ano. Joversina dirigiu-se à delegacia de polícia para registrar uma ocorrência acompanhada de seus três filhos, crianças que jamais imaginariam o que aconteceria.
O policial atendente, ao ter em mãos os dados qualificativos de Joversina, constatou a existência de um mandado de prisão expedido em desfavor da desafortunada mãe, efetuando a prisão de imediato. O cumprimento do mandado de prisão foi devidamente registrado em boletim de ocorrência (RO 914-03720/2012).
Joversina foi encaminhada a um estabelecimento prisional destinado a presos provisórios sem sequer saber o destino que seria dado a seus filhos. Passou alguns meses no local até ser transferida para o Presídio Nelson Hungria, conhecido como Bangu 7 e situado no famoso Complexo de Gericinó, no bairro de Bangu, faceta pouco maravilhosa da cidade do Rio de Janeiro.
No início de dezembro, o defensor público que atua na unidade prisional fez o primeiro atendimento de Joversina. Quase três meses depois da prisão, nossa personagem não sabia a razão do encarceramento. Foi informada pelo defensor que a ordem de prisão fora dada pela 4.ª Vara Criminal da Comarca de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Joversina teria sido presa em flagrante por um crime de furto no ano de 2008 e logo em seguida lhe foi concedida a liberdade provisória. Contudo, como simplesmente desaparecera, sem informar o local em que poderia ser encontrada, foi decretada sua prisão preventiva (autos n.º 0363123-08.2008.8.12.0001).
Atônita, Joversina não conseguia entender o que lhe era explicado. Disse que jamais havia sido presa. Vinha de uma família humilde e honesta e apenas uma irmã já havia tido problemas com a polícia. Angustiada, perguntou sobre seus filhos. O defensor comprometeu-se a tentar obter o paradeiro das crianças. Joversina forneceu o telefone de uma tia, único parente residente no Rio de Janeiro.
Após o atendimento, duas providências foram tomadas de imediato. No telefonema para a familiar de Joversina, o defensor público não obteve qualquer informação sobre as crianças. Já o contato com a defensora pública da 4.ª Vara Criminal mostrou-se mais proveitoso. Diante da informação de que Joversina negava ter sido presa em flagrante, formulou-se requerimento de identificação criminal. Se alguém havia fornecido os dados de Joversina ao ser preso em flagrante, certamente não havia apresentado qualquer documento de identidade. Nesses casos, a lei determina que a pessoa presa seja identificada criminalmente, o que se dá por meio da coleta de suas impressões digitais e pela realização de algumas fotografias. Portanto, era possível confrontar os padrões datiloscópicos de Joversina com as impressões digitais colhidas no momento da prisão, provando que nossa personagem estava presa por um abominável equívoco.
O requerimento, por óbvio, era urgente. Mas somente em meados de março de 2013, houve decisão da 4.ª Vara Criminal determinando a realização da identificação criminal.
Enquanto aguardava a apreciação do pedido, o defensor público entrou em contato com a Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a fim de tentar localizar as crianças. Veio a informação de que as crianças estavam em abrigo, por força de procedimento de acolhimento institucional (autos n.º 0057598-24.2012.8.19.0021). A localização viabilizava a formulação de pedido de guarda por um dos parentes, possibilitando que as crianças deixassem o abrigo e voltassem à companhia da família.
Novo contato foi realizado com a tia de Joversina. O defensor público explicou o procedimento que deveria ser adotado para que as crianças pudessem deixar o abrigo. A simplicidade da interlocutora permitia que o defensor percebesse não estar sendo compreendido. A tia de nossa personagem parecia não possuir a iniciativa necessária à solução dos problemas enfrentados pelas crianças. Seria necessário que Joversina deixasse o cárcere para que seus filhos deixassem o abrigo.
Apesar de todas as dificuldades, a notícia da localização das crianças foi capaz de acalmar o coração de Joversina. No meio de todo aquele horror, a localização dos filhos era a primeira boa notícia.
Somente no final de maio de 2013, a coleta das impressões digitais foi realizada. O exame pericial comprovou a versão de Joversina. Não era ela a pessoa presa em flagrante no ano de 2008. Posteriormente, soube-se que a irmã de Joversina, presa em flagrante por furto, forneceu à polícia os dados de sua irmã inocente. A 4.ª Vara Criminal, diante da constatação pericial, revogou a prisão, expedindo alvará de soltura e determinando o envio de uma carta precatória ao Rio de Janeiro, a fim de que juízo situado na cidade em que Joversina estava presa determinasse o cumprimento da ordem judicial de soltura.
Parecia o fim do calvário. Restava apenas realizar o sarq, procedimento que verifica se há ordem de prisão emitida em outro processo ou qualquer outro fato que impeça o cumprimento do alvará de soltura expedido. A Polinter é responsável por realizar tal procedimento. Na ampla maioria das vezes em que a Polinter levanta um óbice contra o cumprimento de ordem de soltura, o óbice mostra-se inexistente. Seja porque os juízos não comunicam recolhimentos de mandados de prisão à Polinter, seja porque a organização do órgão não se mostra a ideal, diversos cidadãos veem ordens judiciais de soltura emitidas em seu favor deixarem de ser cumpridas por força de supostas ordens de prisão que já não existem.
Com Joversina não foi diferente. A carta precatória expedida foi recebida pela 1.ª Vara Criminal do Fórum Regional de Bangu. Entretanto, não foi dado cumprimento à ordem de soltura, pois a Polinter havia apontado um impedimento à restituição da liberdade de locomoção de Joversina (autos n.º 0017660-21.2013.8.19.0204).
Ao fazer contato com a 1.ª Vara Criminal do Fórum Regional de Bangu, o defensor público não obteve qualquer informação sobre o óbice, pois os autos da carta precatória expedida já haviam sido devolvidos à 4.ª Vara Criminal de Campo Grande. Todavia, o contato com a defensora pública do Mato Grosso do Sul também não foi capaz de esclarecer a razão da manutenção do encarceramento, haja vista que os autos da carta precatória ainda não haviam chegado em Campo Grande.
Transcorridos alguns dias foi possível saber que o registro de ocorrência 914-03720/2012 era invocado pela Polinter como impedimento ao cumprimento do alvará. Como este registro foi justamente o que documentou o cumprimento do mandado de prisão expedido pela 4.ª Vara Criminal de Campo Grande, estava claro que a expedição do alvará de soltura havia fulminado o mandado de prisão, razão pela qual o óbice invocado tratava-se de mais um dos inúmeros equívocos da Polinter.
O defensor público, então, obteve cópia do registro de ocorrência apontado, remetendo-o por e-mail à defensora sulmatogrossense. Com o documento, foi formulado pedido de expedição de novo alvará de soltura que deveria ser encaminhado ao fórum regional de Bangu juntamente com o registro de ocorrência. Somente assim, quando da realização de novo sarq, seria possível assegurar que o equívoco não ocorreria novamente, pois o número dos autos em que foi expedido o mandado de prisão, constante do registro, demonstraria serem os mesmos autos em que houve a expedição do alvará de soltura ainda não cumprido.
O pedido foi deferido, desta vez de forma mais ágil. Nova carta precatória foi endereçada à 1.ª Vara Criminal de Bangu (autos n.º 0025758-92.2013.8.19.0204). Realizado novo sarq, não houve a invocação de qualquer impedimento à soltura.
Joversina foi posta em liberdade no dia 14 de agosto de 2013. Passou mais de onze meses presa, sem jamais ter praticado qualquer crime. Tomara que tenha mantido sanidade suficiente para recuperar a guarda das crianças.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O Estado e o banco dos réus

A ausência de estabelecimentos prisionais compatíveis com o regime aberto de cumprimento da pena de prisão, no interior do Estado do Rio de Janeiro, produz as mais absurdas violações de direitos humanos e deveria colocar o próprio Estado no banco dos réus.

Sempre em virtude de infrações penais praticadas em um contexto de violência doméstica, Denílson foi condenado a um ano e nove meses de prisão. Segundo as quatro sentenças condenatórias proferidas, Denílson teria praticado quatro crimes de ameaça, dois de desobediência – ante a insistência em se aproximar da vítima, mesmo havendo decisão judicial que determinava fosse guardada distância mínima – e uma contravenção penal de vias de fato, que consiste em agressão incapaz de produzir qualquer lesão corporal. As penas deveriam ser cumpridas inicialmente em regime aberto.
Por força do regime estabelecido, Denílson deveria cumprir sua pena em uma casa de albergado. Nos dias úteis, deixaria o estabelecimento prisional pela manhã, a fim de trabalhar, regressando à noite. Aos sábados, domingos e feriados permaneceria na unidade prisional. Apesar da condenação, a notícia não era de todo ruim. Denílson permaneceu preso durante boa parte da tramitação dos processos, aguardando o julgamento em uma cadeia pública. A espera nesta espécie de unidade prisional equivalia ao cumprimento da pena em regime fechado. Portanto, o apenado estava diante de um ganho de liberdade.
Talvez Denílson sequer desconfiasse que a inacreditável inércia estatal tornaria a pena a ser cumprida muito mais dura do que aquela que lhe foi imposta. Nascido e criado no sul do Estado do Rio de Janeiro, onde residem todos os seus familiares e amigos, nosso personagem percebeu de plano que não poderia cumprir sua pena próximo das pessoas com as quais mantém vínculos afetivos. Simplesmente não existem casas de albergado no sul fluminense. A Lei de Execução Penal, em vigor há mais de vinte e cinco anos, determinou a aquisição e a desapropriação de imóveis para a instalação das casas de albergado. No sul fluminense, o Estado ainda não cumpriu sua obrigação legal. Denílson percebeu que somente ele não pode descumprir a lei.
Conduzido à capital do Estado do Rio de Janeiro, distante cerca de duzentos quilômetros de sua cidade natal, Denílson era obrigado a deixar a unidade prisional todas as manhãs. Como era de se esperar, não conseguiu emprego no município do Rio de Janeiro. Nem mesmo quem mostrasse folha de antecedentes imaculada conseguiria com tamanha rapidez. Sem dinheiro e passando fome, só lhe restavam duas alternativas: entregar-se aos pequenos furtos e até mesmo aos roubos – o que jamais havia feito – ou pedir carona até sua cidade natal, deixando de regressar ao estabelecimento prisional.
Denílson voltou ao sul fluminense. Como sua “fuga” não decorria do propósito de não cumprir a pena, mas sim da impossibilidade de fazê-lo, o apenado ficou instalado em sua própria casa. Não demorou a ser recapturado. Menos de dois meses depois de deixar a capital do Estado, Denílson já estava novamente encarcerado.
 Nova surpresa aguardava Denílson. Ao invés de ser conduzido à casa de albergado, eis que o regime de cumprimento da pena que lhe foi imposta continuava a ser o aberto, o apenado permaneceu na cadeia pública que já conhecia. Passados pouco mais de trinta dias, nada obstante todos os argumentos expostos pela defesa técnica de Denílson, o juízo responsável pela execução da pena considerou a “fuga” como prática de falta grave e regrediu o regime de cumprimento de pena, que passou a ser o semiaberto.
Ainda assim, Denílson deveria ser transferido para uma colônia agrícola, industrial ou para um estabelecimento similar, local em que devem ser cumpridas as penas quando o regime de cumprimento é o semiaberto. Além disso, nesse regime o apenado pode frequentar cursos fora da unidade prisional e trabalhar fora dos muros que o detém. Entretanto, nosso personagem permaneceu na cadeia pública em que estava, ante a falta de vagas em qualquer estabelecimento prisional compatível com o regime semiaberto.
Diante da notória violação dos direitos de Denílson, o defensor público que atuava na cadeia pública onde o apenado era mantido encarcerado aventou a possibilidade de impetrar uma ordem de habeas corpus. Desde logo, deixou claro que a medida não criaria uma vaga em unidade prisional compatível com o regime semiaberto. Contudo, sublinhou que se poderia argumentar que a solução da falta de vagas deveria ser a inserção do apenado em regime menos gravoso, o que poderia ensejar sua transferência para casa de albergado ou até mesmo a prisão domiciliar.
Diante da possibilidade de estar novamente em uma casa de albergado, Denílson surpreendeu o defensor público. Ponderou que sua pena estaria cumprida em alguns meses, ante o tempo em que permaneceu encarcerado aguardando o julgamento, tempo este que é subtraído da pena a ser cumprida. Disse que a volta à casa de albergado apenas ensejaria nova “fuga”, na medida em que as mesmas dificuldades já enfrentadas reapareceriam. Expôs que não gostaria de ser preso novamente na presença de seus filhos, o que aconteceu quando da recaptura e segundo Denílson, foi pior do que qualquer pena. Completou afirmando que preferia aguardar o término de sua pena na cadeia pública, a fim de sair do cárcere “sem nada dever”.
A fim de não aumentar ainda mais a lista de prejuízos impostos ao apenado, o defensor público protocolou petição que requeria a declaração da extinção da pena pelo cumprimento e a expedição do alvará de soltura quarenta dias antes do efetivo término da pena. Não raro, a Vara de Execução Penal do Estado do Rio de Janeiro demora mais de um mês para juntar petições aos autos do processo. Para que o juiz aprecie o pedido, na maioria dos casos, a juntada é indispensável. Mesmo com o zelo demonstrado pela defesa técnica do apenado, a determinação de expedição do alvará de soltura somente ocorreu dois dias após terminada a pena. Parecia que o calvário de Denílson chegava ao fim.
Apenas parecia. Toda vez que um alvará de soltura é expedido, realiza-se um procedimento de verificação da eventual existência de ordem de prisão que impeça a colocação do cidadão em liberdade. A verificação foi realizada e não foi apontada qualquer razão que impedisse a soltura. O oficial de justiça, então, munido do alvará de soltura, partiu rumo à cadeia pública em que estava Denílson, a fim de colocá-lo em liberdade.
Todavia, a ordem de soltura não foi cumprida. O agente penitenciário responsável pelo setor de classificação da cadeia pública aduziu que existia um mandado de prisão expedido no curso de processo penal em que Denílson era réu. O defensor público foi verificar a informação e descobriu que o mandado de prisão invocado era oriundo de um dos quatro processos em que foi proferida sentença condenatória. Portanto, a pena já havia sido cumprida, não havendo razão para a subsistência do mandado de prisão.
Formulou-se, então, pedido de submissão do alvará a novo procedimento de verificação de impedimento do cumprimento da ordem judicial de soltura, haja vista que o defensor público já havia provado junto ao setor de classificação que o impedimento invocado era equivocado. O juízo responsável pela execução da pena deferiu o pedido.
Somente após dez dias do término da pena que lhe foi imposta, pena esta que deveria ter sido cumprida em regime aberto e foi quase que integralmente cumprida em regime fechado, Denílson foi posto em liberdade.