Sempre
em virtude de infrações penais praticadas em um contexto de violência doméstica,
Denílson foi condenado a um ano e nove meses de prisão. Segundo as quatro
sentenças condenatórias proferidas, Denílson teria praticado quatro crimes de
ameaça, dois de desobediência – ante a insistência em se aproximar da vítima,
mesmo havendo decisão judicial que determinava fosse guardada distância mínima –
e uma contravenção penal de vias de fato, que consiste em agressão incapaz de
produzir qualquer lesão corporal. As penas deveriam ser cumpridas inicialmente
em regime aberto.
Por
força do regime estabelecido, Denílson deveria cumprir sua pena em uma casa de
albergado. Nos dias úteis, deixaria o estabelecimento prisional pela manhã, a
fim de trabalhar, regressando à noite. Aos sábados, domingos e feriados
permaneceria na unidade prisional. Apesar da condenação, a notícia não era de
todo ruim. Denílson permaneceu preso durante boa parte da tramitação dos
processos, aguardando o julgamento em uma cadeia pública. A espera nesta
espécie de unidade prisional equivalia ao cumprimento da pena em regime
fechado. Portanto, o apenado estava diante de um ganho de liberdade.
Talvez
Denílson sequer desconfiasse que a inacreditável inércia estatal tornaria a
pena a ser cumprida muito mais dura do que aquela que lhe foi imposta. Nascido
e criado no sul do Estado do Rio de Janeiro, onde residem todos os seus
familiares e amigos, nosso personagem percebeu de plano que não poderia cumprir
sua pena próximo das pessoas com as quais mantém vínculos afetivos.
Simplesmente não existem casas de albergado no sul fluminense. A Lei de
Execução Penal, em vigor há mais de vinte e cinco anos, determinou a aquisição
e a desapropriação de imóveis para a instalação das casas de albergado. No sul
fluminense, o Estado ainda não cumpriu sua obrigação legal. Denílson percebeu
que somente ele não pode descumprir a lei.
Conduzido
à capital do Estado do Rio de Janeiro, distante cerca de duzentos quilômetros
de sua cidade natal, Denílson era obrigado a deixar a unidade prisional todas
as manhãs. Como era de se esperar, não conseguiu emprego no município do Rio de
Janeiro. Nem mesmo quem mostrasse folha de antecedentes imaculada conseguiria
com tamanha rapidez. Sem dinheiro e passando fome, só lhe restavam duas
alternativas: entregar-se aos pequenos furtos e até mesmo aos roubos – o que
jamais havia feito – ou pedir carona até sua cidade natal, deixando de
regressar ao estabelecimento prisional.
Denílson
voltou ao sul fluminense. Como sua “fuga” não decorria do propósito de não
cumprir a pena, mas sim da impossibilidade de fazê-lo, o apenado ficou
instalado em sua própria casa. Não demorou a ser recapturado. Menos de dois
meses depois de deixar a capital do Estado, Denílson já estava novamente
encarcerado.
Nova surpresa aguardava Denílson. Ao invés de
ser conduzido à casa de albergado, eis que o regime de cumprimento da pena que
lhe foi imposta continuava a ser o aberto, o apenado permaneceu na cadeia
pública que já conhecia. Passados pouco mais de trinta dias, nada obstante
todos os argumentos expostos pela defesa técnica de Denílson, o juízo
responsável pela execução da pena considerou a “fuga” como prática de falta
grave e regrediu o regime de cumprimento de pena, que passou a ser o
semiaberto.
Ainda
assim, Denílson deveria ser transferido para uma colônia agrícola, industrial ou
para um estabelecimento similar, local em que devem ser cumpridas as penas
quando o regime de cumprimento é o semiaberto. Além disso, nesse regime o
apenado pode frequentar cursos fora da unidade prisional e trabalhar fora dos
muros que o detém. Entretanto, nosso personagem permaneceu na cadeia pública em
que estava, ante a falta de vagas em qualquer estabelecimento prisional
compatível com o regime semiaberto.
Diante
da notória violação dos direitos de Denílson, o defensor público que atuava na
cadeia pública onde o apenado era mantido encarcerado aventou a possibilidade
de impetrar uma ordem de habeas corpus.
Desde logo, deixou claro que a medida não criaria uma vaga em unidade prisional
compatível com o regime semiaberto. Contudo, sublinhou que se poderia
argumentar que a solução da falta de vagas deveria ser a inserção do apenado em
regime menos gravoso, o que poderia ensejar sua transferência para casa de
albergado ou até mesmo a prisão domiciliar.
Diante
da possibilidade de estar novamente em uma casa de albergado, Denílson
surpreendeu o defensor público. Ponderou que sua pena estaria cumprida em
alguns meses, ante o tempo em que permaneceu encarcerado aguardando o
julgamento, tempo este que é subtraído da pena a ser cumprida. Disse que a
volta à casa de albergado apenas ensejaria nova “fuga”, na medida em que as
mesmas dificuldades já enfrentadas reapareceriam. Expôs que não gostaria de ser
preso novamente na presença de seus filhos, o que aconteceu quando da recaptura
e segundo Denílson, foi pior do que qualquer pena. Completou afirmando que
preferia aguardar o término de sua pena na cadeia pública, a fim de sair do
cárcere “sem nada dever”.
A
fim de não aumentar ainda mais a lista de prejuízos impostos ao apenado, o
defensor público protocolou petição que requeria a declaração da extinção da
pena pelo cumprimento e a expedição do alvará de soltura quarenta dias antes do
efetivo término da pena. Não raro, a Vara de Execução Penal do Estado do Rio de
Janeiro demora mais de um mês para juntar petições aos autos do processo. Para
que o juiz aprecie o pedido, na maioria dos casos, a juntada é indispensável.
Mesmo com o zelo demonstrado pela defesa técnica do apenado, a determinação de
expedição do alvará de soltura somente ocorreu dois dias após terminada a pena.
Parecia que o calvário de Denílson chegava ao fim.
Apenas
parecia. Toda vez que um alvará de soltura é expedido, realiza-se um procedimento
de verificação da eventual existência de ordem de prisão que impeça a colocação
do cidadão em liberdade. A verificação foi realizada e não foi apontada
qualquer razão que impedisse a soltura. O oficial de justiça, então, munido do
alvará de soltura, partiu rumo à cadeia pública em que estava Denílson, a fim
de colocá-lo em liberdade.
Todavia,
a ordem de soltura não foi cumprida. O agente penitenciário responsável pelo
setor de classificação da cadeia pública aduziu que existia um mandado de
prisão expedido no curso de processo penal em que Denílson era réu. O defensor
público foi verificar a informação e descobriu que o mandado de prisão invocado
era oriundo de um dos quatro processos em que foi proferida sentença
condenatória. Portanto, a pena já havia sido cumprida, não havendo razão para a
subsistência do mandado de prisão.
Formulou-se,
então, pedido de submissão do alvará a novo procedimento de verificação de
impedimento do cumprimento da ordem judicial de soltura, haja vista que o
defensor público já havia provado junto ao setor de classificação que o
impedimento invocado era equivocado. O juízo responsável pela execução da pena
deferiu o pedido.
Somente
após dez dias do término da pena que lhe foi imposta, pena esta que deveria ter
sido cumprida em regime aberto e foi quase que integralmente cumprida em regime
fechado, Denílson foi posto em liberdade.
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