terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O Estado e o banco dos réus

A ausência de estabelecimentos prisionais compatíveis com o regime aberto de cumprimento da pena de prisão, no interior do Estado do Rio de Janeiro, produz as mais absurdas violações de direitos humanos e deveria colocar o próprio Estado no banco dos réus.

Sempre em virtude de infrações penais praticadas em um contexto de violência doméstica, Denílson foi condenado a um ano e nove meses de prisão. Segundo as quatro sentenças condenatórias proferidas, Denílson teria praticado quatro crimes de ameaça, dois de desobediência – ante a insistência em se aproximar da vítima, mesmo havendo decisão judicial que determinava fosse guardada distância mínima – e uma contravenção penal de vias de fato, que consiste em agressão incapaz de produzir qualquer lesão corporal. As penas deveriam ser cumpridas inicialmente em regime aberto.
Por força do regime estabelecido, Denílson deveria cumprir sua pena em uma casa de albergado. Nos dias úteis, deixaria o estabelecimento prisional pela manhã, a fim de trabalhar, regressando à noite. Aos sábados, domingos e feriados permaneceria na unidade prisional. Apesar da condenação, a notícia não era de todo ruim. Denílson permaneceu preso durante boa parte da tramitação dos processos, aguardando o julgamento em uma cadeia pública. A espera nesta espécie de unidade prisional equivalia ao cumprimento da pena em regime fechado. Portanto, o apenado estava diante de um ganho de liberdade.
Talvez Denílson sequer desconfiasse que a inacreditável inércia estatal tornaria a pena a ser cumprida muito mais dura do que aquela que lhe foi imposta. Nascido e criado no sul do Estado do Rio de Janeiro, onde residem todos os seus familiares e amigos, nosso personagem percebeu de plano que não poderia cumprir sua pena próximo das pessoas com as quais mantém vínculos afetivos. Simplesmente não existem casas de albergado no sul fluminense. A Lei de Execução Penal, em vigor há mais de vinte e cinco anos, determinou a aquisição e a desapropriação de imóveis para a instalação das casas de albergado. No sul fluminense, o Estado ainda não cumpriu sua obrigação legal. Denílson percebeu que somente ele não pode descumprir a lei.
Conduzido à capital do Estado do Rio de Janeiro, distante cerca de duzentos quilômetros de sua cidade natal, Denílson era obrigado a deixar a unidade prisional todas as manhãs. Como era de se esperar, não conseguiu emprego no município do Rio de Janeiro. Nem mesmo quem mostrasse folha de antecedentes imaculada conseguiria com tamanha rapidez. Sem dinheiro e passando fome, só lhe restavam duas alternativas: entregar-se aos pequenos furtos e até mesmo aos roubos – o que jamais havia feito – ou pedir carona até sua cidade natal, deixando de regressar ao estabelecimento prisional.
Denílson voltou ao sul fluminense. Como sua “fuga” não decorria do propósito de não cumprir a pena, mas sim da impossibilidade de fazê-lo, o apenado ficou instalado em sua própria casa. Não demorou a ser recapturado. Menos de dois meses depois de deixar a capital do Estado, Denílson já estava novamente encarcerado.
 Nova surpresa aguardava Denílson. Ao invés de ser conduzido à casa de albergado, eis que o regime de cumprimento da pena que lhe foi imposta continuava a ser o aberto, o apenado permaneceu na cadeia pública que já conhecia. Passados pouco mais de trinta dias, nada obstante todos os argumentos expostos pela defesa técnica de Denílson, o juízo responsável pela execução da pena considerou a “fuga” como prática de falta grave e regrediu o regime de cumprimento de pena, que passou a ser o semiaberto.
Ainda assim, Denílson deveria ser transferido para uma colônia agrícola, industrial ou para um estabelecimento similar, local em que devem ser cumpridas as penas quando o regime de cumprimento é o semiaberto. Além disso, nesse regime o apenado pode frequentar cursos fora da unidade prisional e trabalhar fora dos muros que o detém. Entretanto, nosso personagem permaneceu na cadeia pública em que estava, ante a falta de vagas em qualquer estabelecimento prisional compatível com o regime semiaberto.
Diante da notória violação dos direitos de Denílson, o defensor público que atuava na cadeia pública onde o apenado era mantido encarcerado aventou a possibilidade de impetrar uma ordem de habeas corpus. Desde logo, deixou claro que a medida não criaria uma vaga em unidade prisional compatível com o regime semiaberto. Contudo, sublinhou que se poderia argumentar que a solução da falta de vagas deveria ser a inserção do apenado em regime menos gravoso, o que poderia ensejar sua transferência para casa de albergado ou até mesmo a prisão domiciliar.
Diante da possibilidade de estar novamente em uma casa de albergado, Denílson surpreendeu o defensor público. Ponderou que sua pena estaria cumprida em alguns meses, ante o tempo em que permaneceu encarcerado aguardando o julgamento, tempo este que é subtraído da pena a ser cumprida. Disse que a volta à casa de albergado apenas ensejaria nova “fuga”, na medida em que as mesmas dificuldades já enfrentadas reapareceriam. Expôs que não gostaria de ser preso novamente na presença de seus filhos, o que aconteceu quando da recaptura e segundo Denílson, foi pior do que qualquer pena. Completou afirmando que preferia aguardar o término de sua pena na cadeia pública, a fim de sair do cárcere “sem nada dever”.
A fim de não aumentar ainda mais a lista de prejuízos impostos ao apenado, o defensor público protocolou petição que requeria a declaração da extinção da pena pelo cumprimento e a expedição do alvará de soltura quarenta dias antes do efetivo término da pena. Não raro, a Vara de Execução Penal do Estado do Rio de Janeiro demora mais de um mês para juntar petições aos autos do processo. Para que o juiz aprecie o pedido, na maioria dos casos, a juntada é indispensável. Mesmo com o zelo demonstrado pela defesa técnica do apenado, a determinação de expedição do alvará de soltura somente ocorreu dois dias após terminada a pena. Parecia que o calvário de Denílson chegava ao fim.
Apenas parecia. Toda vez que um alvará de soltura é expedido, realiza-se um procedimento de verificação da eventual existência de ordem de prisão que impeça a colocação do cidadão em liberdade. A verificação foi realizada e não foi apontada qualquer razão que impedisse a soltura. O oficial de justiça, então, munido do alvará de soltura, partiu rumo à cadeia pública em que estava Denílson, a fim de colocá-lo em liberdade.
Todavia, a ordem de soltura não foi cumprida. O agente penitenciário responsável pelo setor de classificação da cadeia pública aduziu que existia um mandado de prisão expedido no curso de processo penal em que Denílson era réu. O defensor público foi verificar a informação e descobriu que o mandado de prisão invocado era oriundo de um dos quatro processos em que foi proferida sentença condenatória. Portanto, a pena já havia sido cumprida, não havendo razão para a subsistência do mandado de prisão.
Formulou-se, então, pedido de submissão do alvará a novo procedimento de verificação de impedimento do cumprimento da ordem judicial de soltura, haja vista que o defensor público já havia provado junto ao setor de classificação que o impedimento invocado era equivocado. O juízo responsável pela execução da pena deferiu o pedido.
Somente após dez dias do término da pena que lhe foi imposta, pena esta que deveria ter sido cumprida em regime aberto e foi quase que integralmente cumprida em regime fechado, Denílson foi posto em liberdade.


Nenhum comentário:

Postar um comentário