quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A vítima da loucura

As provas que contrariam os interesses do cidadão preso, mesmo quando o bom senso indica não serem dignas de crédito, podem ganhar mais relevância do que aquelas que apontam na direção da liberdade.

A guerra judicial, ao seu final, restou perdida. Não que as provas produzidas ao longo do processo demonstrassem de forma incontestável a culpa do acusado. Depois de condenado pelo crime de estupro tentado, em primeira instância, o réu recorreu.  Três desembargadores analisaram o caso. Dois deles mantiveram a condenação, mas um entendeu que nosso personagem era inocente.  O voto vencido possibilitou a interposição de um novo recurso a ser analisado por cinco desembargadores diferentes. Novamente, a votação foi apertada. Três desembargadores votaram pela manutenção da condenação, enquanto dois absolviam o acusado (autos n.º 0170263-48.2009.8.19.0001).
Mesmo contando com o voto de três desembargadores que entendiam não haver prova suficiente para a condenação, o réu acabou condenado, somente lhe restando cumprir a pena de 3 anos, 10 meses e 20 dias.
Durante toda a marcha processual, o acusado permaneceu preso, razão pela qual em 25 de janeiro de 2011 cumpriu dois quintos da pena, preenchendo o requisito temporal necessário à progressão para o regime semiaberto. Tal regime não importa, necessariamente, na saída do apenado do cárcere. Entretanto, estando inserido no regime semiaberto, o apenado poderia aspirar visitar periodicamente sua família, trabalhar fora dos muros do presídio, frequentar curso de profissionalização etc., desde que preenchesse os requisitos para tanto.
Em outubro de 2011, o juízo responsável pela execução da pena debruçou-se sobre a pretensão do apenado de progredir de regime.  Reconheceu que os dois requisitos estabelecidos expressamente pela lei estavam preenchidos. Mais de dois quintos da pena já estavam cumpridos e o apenado mantinha bom comportamento carcerário. Apesar disso, o juízo não deferiu de pronto o pedido de progressão de regime. Preferiu determinar que o apenado fosse submetido aos chamados exames criminológicos, a serem realizados por assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras. Decisões dos Tribunais Superiores defendem a possibilidade de se exigir os exames criminológicos em determinados casos, mesmo tendo entrado em vigor no ano de 2003 uma lei destinada justamente a acabar com a exigência de realização dos exames nos casos de progressão de regime.
Os exames realizados não revelaram, segundo avaliação do próprio juízo, qualquer óbice à progressão. Contudo, a exigência de realização de tais exames fez com que a progressão para o regime semiaberto somente fosse deferida no final de janeiro de 2012, quando o apenado já havia satisfeito o requisito temporal necessário à progressão há mais de um ano.
Em fevereiro de 2012, nosso personagem cumpriu dois terços da pena. Assim, preencheu um dos requisitos necessários à concessão do livramento condicional. O exercício de tal direito implica no cumprimento do restante da pena em liberdade, ficando o apenado submetido ao cumprimento de determinadas condições. A defesa do apenado, então, formulou pedido de livramento condicional, aproveitando-se do fato do apenado ter sido submetido recentemente aos exames criminológicos.
Surpreendentemente, o juízo indeferiu o pedido de livramento condicional, invocando um dos exames criminológicos que já havia apreciado quando da progressão de regime. Argumentou o juízo que o exame realizado por psiquiatra indicava a existência de patologia, o que impedia o gozo de livramento condicional, tendo em vista a inconveniência de se colocar o apenado em liberdade.
O laudo elaborado pelo psiquiatra causava perplexidade. A doença psiquiátrica que supostamente acometia o apenado não era indicada pelo profissional.  Não bastasse, o laudo omitia o número da classificação internacional de doenças (CID). Afirmava-se a existência de uma doença considerada obstáculo à recuperação da liberdade, mas não se identificava qual era a doença. A razão para tal omissão parecia clara. A conclusão do psiquiatra acerca da existência da doença baseava-se no fato de que o apenado negava a autoria do crime pelo qual foi condenado. Ao menos era isso que constava no corpo do laudo pericial. Tratava-se, portanto, de uma loucura compartilhada, de certa forma, pelos três desembargadores que absolveram nosso personagem.
Em agosto de 2012, novos exames foram realizados. Talvez por força de um tratamento relâmpago, extremamente exitoso, realizado no interior do sistema penitenciário e digno de prêmio internacional, o novo laudo psiquiátrico não apontou qualquer patologia. Aproveitando-se desse "novo" quadro, a defesa do apenado formulou novo pedido de livramento condicional. Apesar do óbice invocado pelo juízo para indeferir o livramento condicional não mais existir, não houve o pronto deferimento do livramento. O juízo determinou o envio de ofício à unidade prisional, a fim de obter informações sobre o tratamento psiquiátrico a que foi submetido o apenado .
Não restou outra alternativa à defesa técnica do apenado que não a impetração de ordem de habeas corpus, a fim de ver deferido o pedido de livramento condicional, antes que o juízo responsável pela execução da pena exija o cumprimento de outro requisito. O Tribunal de Justiça ainda não apreciou o pedido de habeas corpus. A pena imposta a nosso personagem estará integralmente cumprida no mês de maio de 2013. Talvez ainda seja possível exercer o direito ao livramento condicional durante os últimos dias da sanção penal.
Não há dúvida de que o apenado é vítima da loucura. Não de uma loucura que o acometa, pois esta jamais foi diagnosticada. Nosso personagem foi vítima da loucura de um sistema repressivo extremamente burocratizado, desprovido muitas vezes de qualquer razoabilidade e em boa parte caótico.

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