terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Os prejuízos de Paulo

Até quando o sistema de verificação da existência de mandados de prisão, acionado toda vez que uma ordem judicial determina a soltura de um cidadão, será caótico e imporá prejuízos irreparáveis a milhares de pessoas?
 
Novamente, Paulo se via preso. Estava em liberdade desde setembro de 2011, quando lhe foi concedido o livramento condicional. Imaginava cumprir solto todo o restante da pena que lhe havia sido imposta e estava disposto a respeitar todas as condições estabelecidas no momento da concessão do livramento. Faltava muito pouco para o término da pena do crime de furto.
Contrariando suas próprias expectativas, o mês de maio de 2012 impunha a Paulo nova passagem pelo sistema prisional. Desta vez, havia sido preso em flagrante pela suposta prática de uma tentativa de roubo. A comunicação da prisão foi enviada ao juiz responsável pelo caso, que a converteu prontamente em prisão preventiva, determinando a expedição de mandado de prisão. Argumentou que Paulo já possuía antecedentes (o furto voltava para lhe assombrar) e que o crime de roubo era grave, o que permitia presumir a periculosidade de nosso personagem.
A decisão era tecnicamente frágil. A Constituição estabelece que todos os acusados devem receber tratamento de inocente até que sejam condenados definitivamente. Portanto, invocar como fundamento da prisão a gravidade do crime que é atribuído ao réu contraria frontalmente a Constituição, na medida em não se pode afirmar a culpa do acusado em relação a este crime. O que pesou, na verdade, foi o fato de Paulo não ser um novato no sistema penitenciário.
O defensor público responsável pela defesa de Paulo formulou pedido de revogação da prisão. O juiz manteve sua posição. Afirmou que as testemunhas eram as próprias vítimas submetidas à grave ameaça empregada por Paulo durante a tentativa de roubo, razão pela qual a liberdade do acusado as intimidaria. Mais uma vez o juiz partia do pressuposto de que Paulo havia praticado o crime, relativizando a Constituição.
Nem tudo era má notícia. Logo no início de junho de 2012, o juiz responsável pela execução da primeira pena imposta a Paulo declarou tal pena extinta. O tempo de duração da pena havia se esgotado sem que o livramento condicional fosse revogado. Determinou-se, assim, o recolhimento dos mandados de prisão expedidos por força desta primeira sanção penal (autos n.º 012563248.2011.8.19.0001). Os mandados de prisão relativos ao novo processo passaram a ser o único obstáculo entre Paulo e a liberdade.
As audiências do novo processo foram realizadas e todas as testemunhas foram ouvidas. Além disso, Paulo foi interrogado. Ao final, acusação e defesa apresentaram seus argumentos finais.
O próprio Ministério Público pediu que Paulo fosse absolvido. Esclareceu que apenas uma das vítimas o reconheceu e mesmo assim somente teria feito tal reconhecimento na delegacia de polícia, retratando-se perante o juiz e demonstrando não ter a convicção de que Paulo fora um dos assaltantes. A vítima restante, durante todo o tempo, afirmou não reconhecer o acusado A defesa de Paulo fez uso dos mesmos argumentos e sublinhou que sequer seria possível afirmar que Paulo foi reconhecido por uma das vítimas. Um dos policiais que realizou a prisão em flagrante afirmava que esse suposto reconhecimento tinha sido realizado em uma praça com pouca iluminação e o outro policial envolvido no caso dizia ter o reconhecimento ocorrido na delegacia de polícia.
O juiz proferiu sentença absolvendo Paulo. Considerou os argumentos das partes do processo e ressaltou que Paulo não foi encontrado com nenhum dos bens subtraídos, além de ter sido preso em local razoavelmente distante daquele em que o crime ocorreu (autos n.º 0005001-06.2012.8.19.0045). Com a absolvição, o juiz determinou a expedição de alvará de soltura. Estávamos no final do mês de setembro de 2012 e parecia o fim do pesadelo de Paulo. Mas não era.
A expedição de qualquer alvará de soltura, ao menos no Estado do Rio de Janeiro, enseja a realização de um procedimento denominado sarq. Por meio deste procedimento, busca-se verificar se existe mandado de prisão que impeça o cumprimento do alvará de soltura. Em um primeiro momento, apontou-se a existência de mandado de prisão expedido pelo juízo que havia executado a primeira pena imposta a Paulo. É o que se chama de prejuízo.
Diante do prejuízo do alvará de soltura, sequer determinou-se que um oficial de justiça levasse o documento até a unidade prisional em que Paulo se encontrava. Afinal, tal alvará não resultaria na liberdade de nosso personagem.
Contudo, o defensor público em atuação na unidade prisional tinha ciência de que o mandado de prisão encontrado durante o sarq não poderia impedir o cumprimento do alvará de soltura. O juiz responsável pela execução da primeira pena já havia determinado o recolhimento do mandado quando declarou a pena extinta. Como acontece em inúmeros casos, os órgãos responsáveis pelo recolhimento, sempre tão zelosos em apontar razões que impeçam o cumprimento de ordens de soltura, não haviam feito o recolhimento da ordem de prisão.
O defensor, então, elaborou uma petição e dirigiu-se até o juiz responsável pela execução daquela pena, requerendo fosse determinado novo recolhimento dos mandados de prisão e expedido alvará de soltura, a fim de agilizar a recuperação do direito de Paulo à liberdade. O pedido foi atendimento pelo juiz e o defensor ficou absolutamente tranquilo. O único óbice à liberdade havia sido removido e o novo sarq indicaria a ausência de qualquer motivo que impedisse o cumprimento do novo alvará de soltura.
De fato, não houve a indicação de qualquer novo obstáculo à colocação de Paulo em liberdade. O oficial de justiça, de posse do novo alvará de soltura, foi até a unidade prisional em que Paulo estava custodiado. Ao apresentar o alvará ao setor de classificação da unidade, a surpresa: o agente penitenciário responsável afirmou que não poderia colocar Paulo em liberdade, pois o prontuário do preso indicava a existência do auto de prisão em flagrante n.º 089/02083/2012, sem que houvesse qualquer informação sobre ordem judicial determinando a soltura de Paulo no caso em que tal auto de prisão fora lavrado. Portanto, o prejuízo de um alvará impedia novamente que Paulo reconquistasse a liberdade.
A informação causava espanto. A Polinter participa ativamente do sarq e possui cadastro que registra todos os autos de prisão em flagrante e seus respectivos destinos. Improvável que não tivesse percebido o auto de prisão invocado pelo setor de classificação. Entretanto, sem qualquer informação adicional, o oficial de justiça deixou o local sem restituir a Paulo sua liberdade.
Imaginando que o problema estivesse solucionado, o defensor público em atuação na unidade prisional espantou-se ao verificar que Paulo continuava encarcerado. Voltou à Vara de Execução Penal para se informar sobre as razões do não cumprimento do novo alvará de soltura e observou o motivo apontado pelo setor de classificação. Ao cruzar os dados, percebeu que o auto de prisão em flagrante encontrado pelo setor de classificação era decorrente da prisão realizada em maio de 2012, por força da suposta tentativa de roubo, crime do qual Paulo foi absolvido.
Explicando todo o ocorrido, o defensor público enviou ofício ao juiz que absolveu Paulo, pedindo que o alvará de soltura expedido fosse submetido a novo sarq, eis que apenas a apresentação deste alvará ao setor de classificação recolocaria nosso personagem em liberdade. Desta vez, finalmente, não houve prejuízo que impedisse a soltura e Paulo foi colocado em liberdade. Era o dia 12 de dezembro de 2012. O Natal que se aproximava seria mais feliz para Paulo e sua família, o que não apaga todos os “prejuízos” que lhes foram impostos.

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