quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A apresentação de Anderson a Kafka

A insensibilidade diante do quase abandono a que está relegada a população carcerária não esmorece nem mesmo quando se descobre que um de seus integrantes já deveria estar em liberdade há mais de dez meses.

Anderson foi preso em flagrante pela suposta prática dos crimes de furto tentado e posse de droga para consumo próprio. O encarceramento foi comunicado ao Poder Judiciário no dia 2 de setembro de 2011.
O período de Anderson no cárcere deveria ser curto. Logo no dia seis, a liberdade provisória foi concedida. Considerou-se que os elementos informativos colhidos não justificavam a manutenção da prisão. Anderson havia ingressado em residência alheia, mas deixou o local sem nada subtrair. Teria sido encontrada com ele diminuta quantidade de cocaína, que se destinava a seu próprio consumo, fato que não autoriza a prisão. Não bastasse, sequer foi necessária a presença da Polícia no local . Quando os milicianos chegaram ao palco dos acontecimentos, Anderson já havia sido detido por um cidadão comum desarmado (autos n.º 0003261-48.2011.8.19.0077).
Como Anderson não estava preso no mesmo município em que se localizava a sede do juízo, foi necessário expedir um documento denominado carta precatória. Por meio dele, o juízo que concedeu a liberdade provisória solicitava a colaboração de juízo situado no município em que Anderson estava encarcerado para que este determinasse a soltura.
Ao chegar a carta precatória a seu destino, percebeu-se que Anderson já havia sido transferido de unidade prisional. Diante dessa constatação, o juízo destinatário do documento o remeteu a outro município para onde imaginava ter sido o preso conduzido. Por incrível que pareça, a carta precatória se perdeu e Anderson permaneceu esquecido no cárcere.
Não há maré de azar que não seja sucedida por alguma sorte. Passados meses, Anderson foi atendido pelo defensor público que passou a atuar no interior da unidade prisional em que estava preso. Após uma primeira conversa, o defensor foi realizar uma pesquisa sobre a situação de Anderson. Em princípio, não acreditou no que viu. Imaginou que poderia haver decisão proferida em outro estado que determinasse a prisão de Anderson. Contudo, ao prosseguir com a apuração percebeu que não havia qualquer decisão capaz de manter o preso atrás das grades e percebeu que a prisão de Anderson era fruto do extravio da carta precatória.
O defensor público impetrou uma ordem de habeas corpus. Nesses casos, o Tribunal de Justiça pede informações ao juízo de primeira instância antes de apreciar o pedido. Todavia, no caso em tela, o juízo que concedeu a liberdade provisória não mais existia. A Vara Única da comarca, em virtude da demanda crescente, fora dividida em duas varas e o processo de Anderson havia sido distribuído para a segunda.
Ao prestar informações, o novo juízo afirmou que a colocação de Anderson em liberdade exigiria a realização de "novo sarq". Sarq é o procedimento de verificação da eventual existência de mandado de prisão que impeça o cumprimento de alvará de soltura expedido. Assim, sempre que um alvará de soltura é expedido, antes de se colocar o cidadão beneficiado em liberdade, realiza-se o sarq.
Prosseguiu o juízo informando que ele não poderia realizar este novo sarq, pois não dispunha cópia do alvará de soltura, documento que somente constaria no "sistema" do juízo extinto. Com isso, lavou as mãos, concluindo pela necessidade de se realizar novo sarq, mas apontando que somente quem poderia fazê-lo seria um juízo já extinto.
Felizmente, ao apreciar a ordem de habeas corpus, o Tribunal de Justiça determinou a colocação de Anderson em liberdade. O desembargador relator ressaltou o absurdo de se manter um cidadão encarcerado por mais de dez meses, sem que sequer houvesse uma acusação formal contra ele. Anderson jamais foi denunciado pelo Ministério Público. Os fatos supostamente por ele praticados estavam sendo apurados por um inquérito policial até a data de sua soltura. O inquérito também não mais existe. O desembargador determinou que fosse arquivado, tendo em vista que o tempo de encarceramento de Anderson fez com que estivesse cumprida a pena que jamais lhe foi imposta (autos n.º 0036519-52.2012.8.19.0000).
Certamente, Anderson jamais leu o romance "O processo". Mas a dura realidade tratou de apresentá-lo a Franz Kafka.

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